terça-feira, 2 de julho de 2024

O encontro entre culturas: um diálogo entre um protestante francês e um Velho Tupinambá

Em 1578, o protestante francês Jean de Léry publicou o livro “A História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, Também Chamada América”, relatando uma viagem de anos antes ao Brasil, em que ele viveu entre os indígenas tupinambá.


No trecho abaixo, parte do capítulo XIII do livro, ele relata uma conversa com um “Velho Tupinambá” sobre o interesse dos europeus no pau-brasil. A conversa é muito reveladora das diferentes visões de mundo entre os dois povos. Leia um trecho abaixo, sintetizado pelo historiador José Augusto Pádua:


“Por que vindes vós outros, franceses e portugueses, buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?”. Léry responde que certamente tinham madeiras, mas não daquela qualidade, já que as usavam para fazer tinta e não para queimar. Ao que o Velho retruca: “E porventura precisais de muito?”.


Léry explica ao Velho que em sua terra existiam homens que comercializavam mais bens do que os índios podiam imaginar, e que “um só deles compra todo pau-brasil que muitos navios voltam carregados”. Tal discurso surpreende o Velho Tupinambá, que responde com duas perguntas ainda mais surpreendentes: “Mas esse homem tão rico de que me falas não morre?” e “quando morrem para quem fica o que deixam?”. Léry, um pouco irritado, comenta que “os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim”. Mas é obrigado a explicar que os comerciantes deixam seus bens para os filhos ou para parentes próximos.


O Velho, não suportando mais escutar notícias de um comportamento tão estranho e exótico, responde com ainda maior irritação: “vejo que vós outros franceses sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais para amontoar riquezas para vossos filhos e para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutris suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois de nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados”.


Pádua, José Augusto. Jean de Léry, o pau-brasil e o velho Tupinambá. Revista ((o))eco, 2006. Disponível em: https://oeco.org.br/colunas/17223-oeco-15403/. Acesso em 13 jun. 2023.


Perguntas de checagem de compreensão:

1) Para que os europeus usavam as madeiras extraídas do Brasil?

2) Ao saber que, na Europa, um homem muito rico comprava vários carregamentos de pau-brasil para vender e enriquecer, o Velho Tupinambá pergunta: “Mas esse homem tão rico de que me falas não morre?” O que será que ele tinha em mente ao fazer essa pergunta?

3) Em qual frase de Léry reconhecemos que os indígenas investigavam detalhadamente os assuntos sobre os quais conversaram?

4) No último parágrafo citado, o Velho Tupinambá exibe grande estranhamento diante do comportamento dos europeus. Do que ele os chama? Como ele compara as atitudes dos indígenas e dos europeus em relação ao cuidado deles em relação aos seus herdeiros?


Atividade de produção de texto

Com base nesse diálogo entre um francês protestante e um indígena tupinambá e nos seus conhecimentos sobre o contato entre os europeus e os povos indígenas da América, escreva um texto sobre o seguinte tema: Como os povos de diferentes culturas podem entender uns aos outros?


Para uso do(a) professor(a):


Possíveis respostas:

1) Para tingir tecidos. Como o texto afirma: "já que as usavam para fazer tinta e não para queimar".

2) O estranhamento do Velho Indígena parece remeter ao fato de, sendo a vida finita, há um limite do quanto se pode usufruir do acúmulo de riquezas.

Na pergunta seguinte feita pelo indígena, “quando morrem, para quem fica o que deixam?”, note-se que o francês explica que, ao morrer, as riquezas são deixadas para os herdeiros. O indígena afirma que os tupinambás não têm tal possibilidade em seus horizontes, pois a natureza já fornece tudo que os herdeiros precisam para também viverem bem.

3) Nesta: “os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim”.

O(a) professor(a) pode esclarecer também que não designamos os indígenas como “selvagens”, tratando-se de um uso europeu e preconceituoso da época.

4) Ele os taxa de “grandes loucos”. Afinal, os europeus atravessavam os mares e faziam grandes esforços para acumular uma riqueza que sequer terão tempo de vida para usar, sem perceber o princípio adotado pelos indígenas, formulado como pergunta: “Não será a terra que vos nutris suficiente para alimentá-los também?”


Leituras sugeridas:

Pádua, José Augusto. Jean de Léry, o pau-brasil e o velho Tupinambá. Revista ((o))eco, 2006. Disponível em: https://oeco.org.br/colunas/17223-oeco-15403/. Acesso em 13 jun. 2023.

Luisa Tombini Wittmann (Org.). Ensino (d)e História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

Warren Dean. A Ferro e Fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.